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segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Concordia

Há um tempo, escrevi uma coisa aqui no meio da perplexidade que a leitura de Lord Jim me causou.

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É a história de um capitão da marinha mercante que, ao perceber que seu navio lotado de passageiros irá a pique, abandona-o às escondidas, percebendo seu erro assim que pula da embarcação para o bote salva-vidas. O barco acabou por não naufragar tão rapidamente, e a tripulação foi salva por um outro navio. Jim foi renegado por todos, e acabou por se tornar um nômade náutico no sudeste asiático, pondo em perspectiva tudo aquilo que Joseph Conrad, talvez um dos maiores romancistas ocidentais, considerava como ético, justo, marinheiro.

Quando o tal do Costa Concordia apareceu na televisão inclinado em direção ao fundo do Mediterrâneo, na hora me lembrei de Conrad, de Lord Jim e da estranheza que me causou ler aquele livro. Schettino, o maledetto capitão do Concordia, como um Jim contemporâneo, fugiu do barco que ia a pique sem escrúpulos e se comunicando com a capitania em terra. Sua cara apareceu no mundo todo, e a humanidade vê naquele italiano bon-vivant o nosso Belzebu a ser excomungado de modo a lavar os nossos próprios pecados.

Acho que agora entendi melhor o porquê de Lord Jim ter me deixado tão ensimesmado: o livro fala de um mundo em que valores como coragem, discrição e cumprimento de palavra estavam na ordem do dia, o que se afasta tanto da nossa vida exposta, violenta e sem rumo de hoje. No caso desse cruzeiro encalhado, o encaminhamento das notícias e das reações não tratam de valores. Tratam, isso sim, de vingança, de detalhes técnicos, do relato por vídeo do desespero dos outros ao ver seu barco virar.

Schettino não é o vilão do mundo. Ele é apenas um homem contemporâneo.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Outro trecho

"(...)Somente duas vezes ele teve de revirar toda sua rotina e entortar seu dia-a-dia como hoje são tortos seus óculos: a primeira foi quando conheceu a moça que o acompanharia sem excessos de intimidade até o dia em que ele resolveu voltar; a segunda aconteceu há poucos meses, quando ele ligou para o trabalho e sem nenhum tipo de exaltação explicou a seus chefes e colegas que não conseguiria mais continuar naquele lugar. Quando viu a mulher pela primeira vez, ele pensou que a vida numa cidade maior do que a sua natal poderia trazer belezas como aquela que lhe passava pela frente, graças a uma simples questão de probabilidade, já que na capital aumentavam as chances de ele encontrar belas mulheres. Foi uma alegria matemática, nascida de uma certeza probabilística: viu-a, beijou-a, levou-a para casa. O encontro de um homem e de uma mulher em uma rua movimentada, o encostar de línguas e de narizes em um café escuro, nada disso merece atenção dos milhões de habitantes desta capital, mas marcou para ele o germe do choro, da cara feia e dos ansiolíticos que ele engolia com pena de si mesmo.


Da segunda vez, o tema foi trágico. Na manhã chuvosa, ele acordou com a cara ensopada, a barba por fazer, os óculos estavam jogados no chão, entortados. A mulher estatelada ao seu lado não reagiu quando ele, ainda grogue, pegou o telefone e discou para o jornal: não vou trabalhar, não estou doente, minha mãe não morreu e não vou me matar, apenas não vou continuar me sufocando nessa cidade, o que inclui martirizar-me numa redação cheia de fumantes, e assim apresento minha demissão (..)"

As coisas vão tomando forma, e, para minha surpresa, elas tem unidade.

Pessoas que nasceram, como eu, no fim daquela década de 80, já estão por aí ganhando o mundo. Eu, o rei das potencialidades, ainda estou por aqui, atrás dos meus óculos de aros escuros.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Uma velha história...



Comecei 2012 num ótimo espetáculo: R&J de Shakespeare - Juventude Interrompida. Trata-se de uma releitura do velho Romeu e Julieta ambientada numa escola tradicional inglesa, durante uma tarde de estudo de quatro jovens. Só é possível se situar nesse pano de fundo por detalhes sutis de enredo e de cenografia que dão conta de construir à frente do público um ambiente escolar sério, rígido, uma escola para rapazes engravatados e imaginativos. Aos pouco, conforme os personagens perfazem sua rotina estudantil, vemos que os quatro rompem a chatice dos dias escolares com uma encenação daquela que é uma das histórias mais conhecidas do teatro ocidental.

A história arquiteta-se sem diferenciar bem o que é Shakespeare do que são os escolares encenando, e aí reside a primeira beleza da peça. Nas incertezas da narração, o drama renascentista surge exigindo a imaginação do espectador e a versatilidade dos quatro ótimos atores em cena. Como caixas chinesas, de dentro da escola vem Romeu e Julieta e, de dentro de Romeu e Julieta, tecem-se as relações pessoais entre os meninos. É assim que os personagens múltiplos do começo ganham cada um sua personalidade, construída dificilmente pelos percalços shakespearianos.

O amor de Julieta por Romeu, o beijo dos dois rapazes e seu relacionamento com as famílias rivais não pretendem contar para quem assiste à peça essa mesma história velhíssima. O que está em jogo no palco são as tensões entre aquele grupo de amigos, o amor que sentem uns pelos outros e um erotismo enclausurado por baixo das gravatas vermelhas. 

Se fosse só isso, a peça já seria fenomenal. Entretanto, soma-se mais um plano de entendimento ao espetáculo: o enredo vai além do esquema "história dentro de outra história" e funde os dois pólos em uma única encenação bivalente, de modo que, com o fim da peça, não se sabe mais se o ator representa um estudante ou o velho Romeu apaixonado. É um novo personagem aquele que morre ao lado da Julieta, e nesse clímax inesperado reside a segunda beleza de um dos melhores espetáculos a que eu assisti nos últimos anos.

A terceira beleza fala por si mesma: http://joaogabrielvasconcellosbrasil.blogspot.com/ (o mesmo daquele filme Do começo ao fim, lembram? Escrevi sobre esse filme aqui: http://www.lflauletta.blogspot.com/2010/05/para-quem-vida-e-facil.html)

O roteiro, genial, é de Joe Calarco e a direção de João Fonseca. A peça é encenada no Rio, mas fica em cartaz no SESC Belenzinho (que merece uma visita mesmo que você não consiga lugar na peça) até o dia 26/02.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Um trecho




"(...) Para quem quase nunca tinha viajado para o exterior, seus conhecimentos de Paris à época eram bastante avançados. Flanava pelo Quartier Latin como outrora subia e descia os morros de Perdizes e inspirava os ares da França como um tuberculoso à procura da cura. Conforme os anos passaram e ele se tornava íntimo da cidade, algo mais ocorria ao caminhar pelas ruas daquele lugar: ele sentia como se a própria Paris lhe indicasse os caminhos que percorria na noite e na vida, e em cada esquina ele tinha uma história para contar aos descentes, quando eles visitassem Paris. Quando voltou, passou a repetir essas histórias para seus convivas, aumentando a antipatia com que ele envolvia sua própria figura. Nunca terminava um drink sem contar para alguém da vez em que se perdera, na madrugada, pelo 3e arrondissement ou de quando participou da coletiva com tal membro da Légion d'Honneur.

No Brasil, ele até tentou estabelecer uma versão tropical de sua vida parisiense. Tentou arranjar uma padaria que no mínimo emulasse sua boulangerie cotidiana, mas não conseguiu se satisfazer. Igualmente, não encontrou em toda a cidade uma única praça que lhe agradasse e fizesse as vezes do Bois de Bologne. Acima de tudo, tentou mais de uma vez, mas o Obelisco do Ibirapuera jamais chegaria aos pés da magnânima Torre Eiffel. Como conseqüência, sua vida cultural esmoreceu, as leituras rarearam e o jornal, que desde antes pouco lhe pagava, menos ainda passou a dar ao nosso homem.

O resultado disso já era esperado: o sujeito ensimesmou-se e se tornou ainda mais do que um chato: virou um ranzinza. (...)"

Trecho de um rascunho a ser publicado quando o texto - e eu mesmo - estiver pronto. 

As coisas se constroem lentamente, tanto na vida quanto na literatura.