"(...)
Somente duas vezes ele teve de
revirar toda sua rotina e entortar seu
dia-a-dia como hoje são tortos seus óculos: a primeira foi quando conheceu a
moça que o acompanharia sem excessos de intimidade até o dia em que ele
resolveu voltar; a segunda aconteceu há poucos meses, quando ele ligou para o
trabalho e sem nenhum tipo de exaltação explicou a seus chefes e colegas que
não conseguiria mais continuar naquele lugar. Quando viu a mulher pela primeira
vez, ele pensou que a vida numa cidade maior do que a sua natal poderia trazer
belezas como aquela que lhe passava pela frente, graças a uma simples questão
de probabilidade, já que na capital aumentavam as chances de ele encontrar
belas mulheres. Foi uma alegria matemática, nascida de uma certeza probabilística:
viu-a, beijou-a, levou-a para casa. O encontro de um homem e de uma mulher em
uma rua movimentada, o encostar de línguas e de narizes em um café escuro, nada disso merece atenção dos milhões de habitantes desta capital, mas
marcou para ele o germe do choro, da cara feia e dos ansiolíticos que ele
engolia com pena de si mesmo.
Da segunda vez, o tema foi trágico.
Na manhã chuvosa, ele acordou com a cara ensopada, a barba por fazer, os óculos
estavam jogados no chão, entortados. A mulher estatelada ao seu lado não reagiu
quando ele, ainda grogue, pegou o telefone e discou para o jornal: não vou
trabalhar, não estou doente, minha mãe não morreu e não vou me matar, apenas
não vou continuar me sufocando nessa cidade, o que inclui martirizar-me numa
redação cheia de fumantes, e assim apresento minha demissão (..)"
As coisas vão tomando forma, e, para minha surpresa, elas tem unidade.
Pessoas que nasceram, como eu, no fim daquela década de 80, já estão por aí ganhando o mundo. Eu, o rei das potencialidades, ainda estou por aqui, atrás dos meus óculos de aros escuros.
"estou feliz! Meus óculos são iguais ao do pessoal do teatro." rs
ResponderExcluirMais um excelente trecho. E, como você sugeriu no outro comentário, vou esperar a continuação.
Luis, já disse que me surpreendi com seu lado escritor, né? Não vejo a hora de ver a Unidade completa!
ResponderExcluirLuis, realmente me deixou sem palavras e de certa forma motivada.
ResponderExcluir