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sábado, 31 de dezembro de 2011

Até aqui

Até aqui, cheguei. Foi assim que Saramago rompeu seu romance com Fidel, depois de décadas de abusos até que, num ano perdido da década passada, ele resolveu não mais tratar o ditador como amigo: o cubano tinha acabado de assassinar líderes da oposição. Eu, que nada tenho a ver com isso, uso a mesma frase para vaticinar o fim de uma era: passo, a partir do mês que vem, a fazer parte do mágico mundo dos smartphones. Causa estranhez aos mais chegados saber que, eu, um chato dos maiores, estou prestes a ter um iPhone. Pois é assim: o mundo nos consome mais rápido do que o tempo que temos para conhecê-lo e o sujeito que lhe tenta travar as voltas acaba girando a contragosto.

No fundo, isso é mais um estímulo à fuga da zona de conforto, essa região maravilhosa onde tudo que existe é seu ou do seu gosto, onde o vento sempre ameniza o calor e o planeta, ao rodar, toma cuidado para não te machucar. Eu gosto muito de sair dessa zona (que me é bem amena, diga-se) e em todas as minhas escolhas importantes eu sempre me enfiei, de propósito, no árido e pouco recompensador: Alemanha, Medicina, escrita. Não é muito, elencado-se em um blog desimportante, mas já é bastante, considerando que eu pensava, até cinco anos atrás, que passaria a vida de terno e gravata.

Se cheguei até aqui, é porque soube me pôr em perspectiva. E sendo eu o objeto daquilo que eu mesmo via, muitas vezes me estranhei e me modifiquei. Isso explica muita coisa, mas a quem tais explicações interessam, a não ser eu mesmo? (Fosse esse blog um diário, e discorreria aqui sobre teorias que não poderiam resistir a meio hora de terapia. Não é o caso, entretanto, já que esta página da internet que me cabe não tem propósito algum, muito menos o de servir de pensata sobre mim mesmo.) E agora, no alvorecer do ano novo, me rendo à novidade e transformo em 2.0.

Encontramo-nos noutro sítio, como disse o mesmo Saramago, e adeus.


sábado, 26 de novembro de 2011

Um mau uso de termos

A loucura é insidiosa. Olhando pra trás, ela sempre esteve lá, às vezes vestida de graça, às vezes explodindo em fúrias, no começo um comichão na vida da pessoa, para depois se transformar na sombra-luz que ocupa a mente dos outros. Digo dos outros porque o maior disfarce da loucura é contra o próprio louco, fazendo com que a insanidade mental seja uma das poucas características humanas que se alcunham de alheias sem muita perda de sentido,

O maluco começa como algo entre o excêntrico e o cômico - é a mulher que não abotoa a saia, o estudante que muda de faculdade, a menina que adora intrigas. É uma gente que no geral vive, mas está no limiar da sobrevivência. Mais uma vez, a loucura é mestre em se esconder, de modo que as pessoas acham que não estão sob seu domínio. Hordas de homens e mulheres são assim, e assim continuam até o fim de seus dias, sendo a maioria considerada sadia. Mas para muitos outros, que às vezes até se confundem com o todo mundo no andar cotidiano, as coisas mudam de sentido, acendem-se lâmpadas que escurecem tanta coisa: o parto de um alienado é feito de sofrimento alheio, já que para ele o nascimento é natural.

Nascido, o alienado não difere do sadio, já que à mudança de equilíbrio mental não se sobrepõe outras diferenças: no dia em que conseguirmos identificar os novos loucos, veremos neles os nossos próprios rostos. A lentidão é a marca da loucura porque aquele que surta é o mesmo que vem colocando pólvora no canhão da mente há anos, décadas.

A loucura tem seus engenhos...

domingo, 16 de outubro de 2011

A canção em mim

Mais um filme que me desafiou. Trata-se de Das Lied in mir, que em português e em outras línguas virou O dia em que eu não nasci. Assisti no Reserva, aproveitando esse meu tempo de indulto, já que hoje mesmo volto para longe, muito longe, de tudo isso.

Eu, que há muito deixei de acompanhar as mudanças quase que semanais dos filmes em cartaz em São Paulo, acabo por me achar perdido diante das possibilidades que os roteiros e guias me oferecem. Não sou mais, como era antes, um ávido frequentador das salas de cinema, nem mais monto roteiros, textos, histórias na minha cabeça enquanto vivo a minha vida. Por isso, segui conselhos, li sinopses (antigamente, algo impensável e abominável) e joguei búzios para escolher um filme que me apetecesse. Pois bem, caí numa fita alemã, rodada em Buenos Aires, que mistura três lúnguas: o inglês, o espanhol e, é claro, o alemão. Só por isso, chamou-me a atenção, paguei e fui.

Esperava algo mais lento, mais reflexivo, do jeito que gosto ao se tratar de uma história da força que o roteirista do filme se propôs a rodar: uma mulher que descobre ser filha de desaparecidos da ditadura argentina, tendo sido levada para fora da Argentina por novos pais alemães, que a esconderam da verdadeira família. O filme, então, seria facilmente levado para o emocional, o psicanalítico, o subjetivo, ou pelo menos era isso que eu esperava quando a tela nos mostra a mulher nadando, depois viajando de carro, depois de avião e por fim esperando o embarque de uma conexão no aeroporto de Buenos Aires.

No entanto, a história que poderia ser a da descoberta de uma nova identidade, ou de um passado novo, é iniciada da forma mais abrupta possível, jogando-nos a uma situação absurda que, se continuasse no absurdo, seria sublime: uma canção de ninar em espanhol faz a alemã chorar por todos os poros no meio do aeroporto. Não é preciso ser um ás da psicanálise freudiana para entender do que se trata: o inconsciente da mulher se lembra da canção, cantada pela mãe desaparecida, da qual ela não tinha conhecimento. Pois esse acontecimento é o gatilho para que se descortine o real passado da protagonista, relatado pifiamente pelo pai alemão, que vai ao seu encontro em terras portenhas.

O resto é um quase embate, uma quase história, um quase drama. Não vemos nem amor nem sofrimento, apesar de o sexo e as lágrimas estarem presentes. Uma pena, pois a locação, os idiomas e o próprio motto do filme renderiam algo magistral. Mesmo a direção sendo precisa, a falha no roteiro e na condução dos personagens nos faz lamentar por um filme que poderia ter sido muito melhor.

Admito que meus hábitos cinéfilos tenham se arrefecido com o decurso desses últimos três anos. Admito, também, que muitas das minhas convicções e da minha visão de mundo tenha mudado. Não admito, entretanto, que o cinema, a experiência cinematográfica e a delícia de desvendar um filme seja levado ao segundo plano na minha vida, e por isso resisto bravamente aos profetas que me apontam o dedo e dizem: és médico, não és sensível nem inteligente para a silverscreen. A tal gente, sugiro que assista a Das Lied in mir.

Aos interessados: http://www.dasliedinmir.de/

domingo, 17 de julho de 2011

Dos objetivos do milênio

Às vezes eu esqueço por que faço medicina. Que bom que o ócio de Julho, a Internet e outras coisas mais me fazem lembrar de muita coisa. Reli sobre os Objetivos do Milênio, e desse assunto ressurgiu o verdadeiro motivo da minha motivação para meu curso. Me perguntei: dos oito objetivos do milênio, quantos dizem respeito à saúde? O resultado foi mais do que um post. Foi um clareamento da mente, muito salutar nesses tempos de limbo.

Se considerarmos saúde num sentido estrito e meramente médico, três dos oitos objetivos são temas relativos à saúde pública: saúde infantil, saúde materna e combate ao HIV/AIDS. Se, no entanto, nos atentarmos para o conceito de saúde como área do conhecimento que ultrapassa os muros do tecnicismo, somos obrigados a reconhecer que todos os objetivos do milênio enunciam, de alguma forma, temas que estão no centro daquilo que é chamado de saúde global.

Fim da miséria e da fome, educação universal, igualdade de gêneros, sustentabilidade ambiental e a construção de uma parceria global são bandeiras calcadas nos solos da saúde pública, da democracia, da justiça. Tais terrenos, apesar de diferentes, são feitos da mesma terra, e é impossível tentar cuidar de um sem cuidar de outro, sob a pena de ver todas aquelas bandeiras perderem seu sustento.

Dessa forma, pensar em objetivos do milênio significa pensar na saúde pública que pretendemos construir. E, conjuntamente, como queremos moldar a sociedade deste nascente século XXI. Por mais difuso que pareçam, os oito objetivos do milênio constituem uma forma suficientemente abrangente de abordar problemas sociais (sanitários, educacionais, jurídicos, ambientais) cujas raízes profundas impedem uma poda eficaz, mas cuja natureza pode ser revertida.

Acima de tudo, me anima ver como a medicina é um veículo de mudança presente nos objetivos do milênio. É empolgante saber que sua profissão tem tamanho poder, e que suas possibilidades e responsabilidades são cada vez mais importantes, necessárias e visadas. Ser médico, numa situação de calamidade global como a que vivemos, é ser capaz de agira em diversos níveis, diversas frentes, desde o contato direto com a criança faminta, até o processo político de fazer com que sua família tenha condições de comprar-lhe o alimento.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

As teorias...

Momento de introspecção: nessas horas eu sempre me volto aos livros. Eles são momentos fundadores da (minha) educação, de volta ao tempo em que eu, da forma mais efêmera possível, vivi no meio das ciências humanas. Às vezes, sinto vontade de me voltar um pouco mais para essa área, que, ao meu ver, se completa tanto com a medicina.Naquela época, eu fingia ser um weberiano que xingava alguns marxistas. Tudo pose, claro, já que nem outrora, nem hoje em dia, sou um conhecedor disso tudo.

Foi isso que eu escolhi: larguei uma formação superficial, em termos teóricos, por outra um pouco mais profunda, mas mesmo assim tão prática que me prende a certos conhecimentos que, não necessariamente, me agradam. Claro que estou gostando, ninguém aguenta a faculdade de medicina sem gostar do que faz. Mas é que cansa, endurece o pensamento, um senso prático (fundamental, eu sei, eu sei...) que impregna tudo o que fazemos. Por exemplo, consegui incutir em mim mesmo um senso comum que me faz me sentir um estranho ao tentar, nessas férias, recuperar um pouco da teoria - livros, livros - que seguem caminhos recusado por mim, há alguns anos.

Não é uma acrasia. Não envolve meus valores profundos, nem é um desafio à minha liberdade. É apenas uma manifestação daquilo que sempre faço, e que tanto tempo me consome, cá com meus botões: constantemente passo em revista tudo aquilo que sonho, desdenho, já fiz e estou fazendo. Só espero que com isso eu não viva na inação.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Algo de novo no velho front

Uma nova semana em São Paulo. Teatro Municipal, comida indiana, metrô novo, certas tristezas, outras alegrias. Me lembro daquele poema do Drummond que diz que o amor é uma coisa que hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será. Velhos amigos, novos amigos, a vida que segue, meio mudada, meio igual. Eu que, ao mesmo tempo o de sempre e algo diferente, tenho antigas e recentes conversas, companhias, experiências, lugares à minha volta.

Como sempre, fui ao cinema, ao teatro, aos cafés, às mesmas ruas por onde flano desde pequeno. O "como sempre" esconde muita coisa: é verdade que a ação externa é a mesma, é verdade que mesmo os novos amigos se parecem com os de antes. Mas a cidade, as pessoas e o mundo todo muda, e o eu que hoje passeia nessas férias vê o mundo com outros olhos, com outra mente e com uma calvície que segue a despeito da Finasterida (os sonhos, esses sim antigos companheiros, mudaram pouco, muito pouco).

E é como se a distância, a medicina e os livros, sempre os livros, pusessem tudo em uma perspectiva alternativa: o tempo, que antes era infinito; o futuro e a profissão, que eram entidades etéreas; eu, que me conhecia tão pouco, apesar de achar que me conhecia tão bem. O relativista franzirá as sobrancelhas: você que mudou, não o seu conhecimento sobre você que se alterou. Não seja ingênuo, relativista... Aquele que mudou continua sendo eu mesmo, e, conhecendo-me melhor, modifico-me mais ainda. A vida não se repete, apesar de, às vezes, andar em círculos.

Sou uma pessoa livre, a priori, pelo menos é o que me dizem (não um amigo, mas um filósofo no papel). Que estranho ser assim: o tempo corre mais rápido do que minhas pernas, sou livre mas nem sei o que é isso e no meu nariz ainda persiste o cheiro de quem foi embora.

sábado, 30 de abril de 2011

pongate!

-Pongate a escrivir!

O velho de óculos escuros falou comigo em espanhol? Já tinha acontecido tanta coisa estranha naquela sala: a secretária sensualizara comigo roçando seu salto na minha perna debaixo da mesa, uma criança entrara correndo pelo corredor e vomitara na pilha de revistas da semana passada, a mãe dessa criança se materializara do além e deu-lhe uma surra na frente de todos nós, e agora, de repente, um velho que a tudo assistira, como eu, vira-se para mim, aponta-me o dedo e grita comigo em espanhol.

Lembrei na hora de Vargas Llosa: ponha-se a escrever seus romances. Que conselho de ouro, resume toda a ópera bufa da vida de um escritor. Mas mesmo assim, o velho da sala não era Vargas Llosa, nem sabia ele, acho eu, das minhas aspirações, de modo que aquele berro foi tudo, menos edificante.

Tenho meu orgulho, e, como todo ser humano, quando ele é ferido torno-me arisco, irônico, não sou uma pessoa fácil. Não fui educado, portanto, e fingi ignorar o velho. Fingi, é claro, porque não se ignora uma pessoa gritando para você. Acho que ele ficou puto, mas gente velha fica puta com tanta facilidade... Mesmo assim ele continuou, pongate, pongate, pongate, mas foi como um eco de si mesmo que nunca recebeu apoio de meus ouvidos.

Eu olhava para a parede branca da minha frente e assim permaneci durante o monólogo do outro. Por fim, aquela voz um tanto trêmula e repetitiva virou algo como minha própria consciência externalizada, como que me lembrando de que eu preciso escrever, escrever, escrever. Todo aquele tempo inutilizado numa sala de espera, cada segundo passado um segundo jogado no lixo e um velho me lembrando do dever: ponha-se a escrever!

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Pra alemão ver

Copio aqui o texto que escrevi para ser publicado numa revista de estudantes de medicina de Jena, na Alemanha. Pediram-me para que falasse um pouco sobre a faculdade de medicina no Brasil, e aí vai:

A realidade da educação médica no Brasil é certamente diferente da que existe na Alemanha. Primeiramente, o Brasil está muito longe de ser um país em condições de oferecer a todos seus estudantes de medicina uma educação de alta qualidade. A primeira conseqüência disso é que existe um punhado de escolas médica de alta qualidade de um lado e de outro tem-se inúmeras faculdade de medicina que mal preenchem os pré-requisitos para continuarem funcionando.  Dessa forma, a desigualdade, que no Brasil é uma constante histórica, também se apresenta, dentre outras formas, no meio médico por meio de uma hierarquização de suas faculdades.
Um dado que assusta é o número de faculdade de medicina neste país: são 181 instituições de ensino superior em que é possível estudar medicina. E esse número continua crescendo: a cada ano, o Ministério da Educação aprova a abertura de novos cursos médicos, dos quais muitos podem ter sua qualidade questionada.O argumento é a necessidade de novos médicos país afora, mas aqueles  como nós que trabalham na saúde sabem que o simples aumento do número de novos médicos não é a solução.
Para se tornar um estudante de medicina no Brasil, mesmo com tantas faculdades, o caminho é árduo. Aqui, não temos nada parecido com o Abitur. Quando terminamos a escola, só podemos acessar o ensino superior depois de passarmos por uma prova seletiva chamada Vestibular. Cada faculdade tem seu próprio vestibular, assim, devemos prestar muitos vestibulares para termos maiores chances de aprovação (eu, por exemplo, prestei seis vestibulares, o que me deu muito o que estudar depois de saído da escola). Se a pessoa não passa, como eu não passei uma vez, ela deve estudar em algum curso preparatório por mais um ano até que novos vestibulares venham (eu não passei de primeira e lá fui eu estudar arduamente por mais um ano).
No meu primeiro ano, tive a chance de conhecer a IFMSA-Brazil. De presença recente no Brasil, a IFMSA representa apenas 40 faculdades, o que é mais um sinal dos problemas que a educação médica no Brasil enfrenta. Ao contrário da BVMD, nossa representação nacional ainda apresenta muitas dificuldades que, tenho certeza, serão superadas com o tempo. Mesmo assim, a ideologia comum que nos une como estudantes de medicina tem a mesma força que em todo o mundo, e isso faz com que lutemos para melhorarmos a educação médica e a saúde da população brasileira.
Quando eu me formar (aqui não temos nada parecido com os Staatsexamen da Alemanha), conseguirei meu diploma de médico, mas não terei garantia de especialização. Caso opte por especializar-me, e virtualmente todos os médicos o fazem, preciso passar por uma prova que versa sobre as matérias do terceiro ao sexto ano médicos, similar ao vestibular nos objetivos, para poder ser um Residente (assim chamamos os especializandos) em algum hospital de ponta. Mais uma vez, como no vestibular, se eu não passar, deverei estudar por mais um ano até que a próxima seleção aconteça.
Morei todo o ano de 2004 na Alemanha, perto de Darmstadt. Aí, eu aprendi a conviver com outras culturas, consegui dominar um pouco da sua língua e, acima de tudo, aprendi a admirar esse belo país. Fico feliz pela oportunidade de escrever para estudantes de medicina alemães, e estou aberto a qualquer pergunta que possa surgir sobre o meu país. Tentei fazer um panorama de como funciona a educação médica no Brasil. Sei que difere muito da realidade alemã, mas tanto aí como aqui, uma coisa é verdade: os estudantes de medicina tem uma grande responsabilidade em relação ao futuro da Medicina, e isso nos faz mais similares do que pode parecer.

domingo, 27 de março de 2011

Uma noite, no teatro

Na semana, fui ao teatro.

Tratava-se de uma peça bonita, de São Paulo, encenada num palco simples, porém extremamente poético. Simples porque parco de objetos e de cores extravagantes, mas extremamente complexo em sua composição, e dessa complexidade posso dizer que a encenação era poética: no instante inicial do ato único, a personagem forma, com areia, um grande círculo que ocupa toda a porção central do tablado, iluminado por um holofote que não ofusca nossos olhos e dão uma impressão onírica que se confirma com o andar do espetáculo. Fora desse círculo, que em pouco tempo sabemos representar a memória da personagem condutora da ação, encontram-se uma cadeira e uma mesa cuja utilidade é contrapor-se ao passado como um presente sempre presente, mesmo que nossas atenções se voltem ao que já foi, há tantos anos. Além disso, nada mais. Com tamanho minimalismo, sem ironias nesta expressão, construiu-se o palco para a trama.

O enredo, aprendemos desde logo, não se passa nem no presente nem no passado dessa família imigrante cuja história vamos conhecendo fragmentadamente. O enredo, na verdade, se passa na cabeça da filha, uma mulher na "meia-idade" que relembra a figura odiada do pai, a pobre mãe jogada à viuvez com o marido vivo há quilômetros, a vida paulistana de uma familia recém-imigrada do Líbano abandonada por aquele que lhe devia prover sustento. Esse pai, um canalha que só no teatro pode existir, deixa a família libanesa de lado para se aventurar na construção da Transamazônica e se apaixona por uma nativa, uma morena de pernas nuas que dá graça a toda a encenação.

A história vai como desde o começo ela se mostra: o pai larga a família e se degraça ao mesmo tempo em que os militares desgraçam a rodovia e o País. Quanto à mãe, fica sozinha com os filhos para criar, dentre eles a menina mais nova, que pouco conheceu do pai e que, durante todo o espetáculo, comanda a ida e vinda dos personagens de um ponto exterior ao círculo central para dentro daquele centro, que é simplesmente uma interface ente o passado pessoal daquela família, o passado histórico deste país e a própria consciência da mulher, que interage com os personagens como um deus que sabe o futuro de tudo e de todos.

Se o enredo não nos surpreende, surpreende-nos a contrução dos personagens, tema tão banal que só a um diletante como eu pode impressionar. De resto, tem-se algumas impressões positivas sobre a peça, como o retrato de uma família estrangeira em plena São Paulo dos anos 1970, a crença numa loucura militar que consumiu milhares de vidas desacreditadas pelo mesmo governo que as plantou naquele lugar onde pereceram, e a leve sensação de que este país retratado não existe mais.

Voltei contente para casa. O teatro - a arte - se não eleva, pelo menos consola.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O sentido velho do termo

Nessa semana apresentei o comitê local da IFMSA aos primeiranistas da minha faculdade. Interessante essa sensação de ensinar algo a alguém. "Digo ensinar" no sentido velho do termo, no sentido desgostado por muitos, inclusive por mim, mas que dessa vez travestiu-se de "fardo do homem branco" e pôs a mim mesmo na frente de uma sala cheia de olhares esperando que eu lhes colocasse na cabeça um pouco do nosso trabalho local.

Quanto preconceito num parágrafo só! Não é verdade que os calouros procuraram nossa capacitação em busca de uma transferência bancária de conhecimento, nem é verdade que a malfadada expressão de Kipling seja aplicável às minhas ações. Pelo contrário, nosso trabalho é o de espalhar o entendimento mútuo e a pacificidade nas relações humanas. E, ainda por cima, chamamos a atenção de muita gente interessa da a cooperar conosco.

Talvez tenha falado besteiras, à primeira vista. Mas não falei nenhuma besteira de verdade. E o que deveria ter saído um texto sobre minhas expectativas para o resto desse ano virou um mosaico de reflexões à ponta do dedo, sem profundidade maior do que aquela que seus olhos podem ver.

Até a vista!

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Janeiro

Se existe um lugar no inferno para blogueiro relapsos, certamente já tenho reservada minha cota de chamas eternas.

O fato é que, mesmo pondo como meta escrever ao menos um post por semana, essa vida de estudante de medicina me impediu de ao menos cumprir essa mínima quantidade. É verdade que as causas para tal desleixo não são meramente exógenas, se me permitem falar nesses termos, já que a inércia e a falta de disciplina não se explicam pelos outros ou por fatores externos, senão por nós mesmos, nossas fraquezas e nossos vícios.

De qualquer forma, as férias chegaram e já estão indo, pouca coisa foi publicada, mas muito foi produzido, o que me fez pensar na utilidade de um blog como este, mas isso não é matéria para um feriado tão agradável! No mais, pouco foi visto ou vivido, e admito que de vez em quando é bom ficar quieto assim. Semana que vem voltam as aulas, essa faculdade vai finalmente deslanchar e, quem sabe, decido alguma coisa desta minha vida tão... livre!

(como soou falasa a última sentença. Ai daqueles que escrevem uma frase como ela e não se pegam a repensá-la mil vezes!)