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sábado, 30 de abril de 2011

pongate!

-Pongate a escrivir!

O velho de óculos escuros falou comigo em espanhol? Já tinha acontecido tanta coisa estranha naquela sala: a secretária sensualizara comigo roçando seu salto na minha perna debaixo da mesa, uma criança entrara correndo pelo corredor e vomitara na pilha de revistas da semana passada, a mãe dessa criança se materializara do além e deu-lhe uma surra na frente de todos nós, e agora, de repente, um velho que a tudo assistira, como eu, vira-se para mim, aponta-me o dedo e grita comigo em espanhol.

Lembrei na hora de Vargas Llosa: ponha-se a escrever seus romances. Que conselho de ouro, resume toda a ópera bufa da vida de um escritor. Mas mesmo assim, o velho da sala não era Vargas Llosa, nem sabia ele, acho eu, das minhas aspirações, de modo que aquele berro foi tudo, menos edificante.

Tenho meu orgulho, e, como todo ser humano, quando ele é ferido torno-me arisco, irônico, não sou uma pessoa fácil. Não fui educado, portanto, e fingi ignorar o velho. Fingi, é claro, porque não se ignora uma pessoa gritando para você. Acho que ele ficou puto, mas gente velha fica puta com tanta facilidade... Mesmo assim ele continuou, pongate, pongate, pongate, mas foi como um eco de si mesmo que nunca recebeu apoio de meus ouvidos.

Eu olhava para a parede branca da minha frente e assim permaneci durante o monólogo do outro. Por fim, aquela voz um tanto trêmula e repetitiva virou algo como minha própria consciência externalizada, como que me lembrando de que eu preciso escrever, escrever, escrever. Todo aquele tempo inutilizado numa sala de espera, cada segundo passado um segundo jogado no lixo e um velho me lembrando do dever: ponha-se a escrever!

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Pra alemão ver

Copio aqui o texto que escrevi para ser publicado numa revista de estudantes de medicina de Jena, na Alemanha. Pediram-me para que falasse um pouco sobre a faculdade de medicina no Brasil, e aí vai:

A realidade da educação médica no Brasil é certamente diferente da que existe na Alemanha. Primeiramente, o Brasil está muito longe de ser um país em condições de oferecer a todos seus estudantes de medicina uma educação de alta qualidade. A primeira conseqüência disso é que existe um punhado de escolas médica de alta qualidade de um lado e de outro tem-se inúmeras faculdade de medicina que mal preenchem os pré-requisitos para continuarem funcionando.  Dessa forma, a desigualdade, que no Brasil é uma constante histórica, também se apresenta, dentre outras formas, no meio médico por meio de uma hierarquização de suas faculdades.
Um dado que assusta é o número de faculdade de medicina neste país: são 181 instituições de ensino superior em que é possível estudar medicina. E esse número continua crescendo: a cada ano, o Ministério da Educação aprova a abertura de novos cursos médicos, dos quais muitos podem ter sua qualidade questionada.O argumento é a necessidade de novos médicos país afora, mas aqueles  como nós que trabalham na saúde sabem que o simples aumento do número de novos médicos não é a solução.
Para se tornar um estudante de medicina no Brasil, mesmo com tantas faculdades, o caminho é árduo. Aqui, não temos nada parecido com o Abitur. Quando terminamos a escola, só podemos acessar o ensino superior depois de passarmos por uma prova seletiva chamada Vestibular. Cada faculdade tem seu próprio vestibular, assim, devemos prestar muitos vestibulares para termos maiores chances de aprovação (eu, por exemplo, prestei seis vestibulares, o que me deu muito o que estudar depois de saído da escola). Se a pessoa não passa, como eu não passei uma vez, ela deve estudar em algum curso preparatório por mais um ano até que novos vestibulares venham (eu não passei de primeira e lá fui eu estudar arduamente por mais um ano).
No meu primeiro ano, tive a chance de conhecer a IFMSA-Brazil. De presença recente no Brasil, a IFMSA representa apenas 40 faculdades, o que é mais um sinal dos problemas que a educação médica no Brasil enfrenta. Ao contrário da BVMD, nossa representação nacional ainda apresenta muitas dificuldades que, tenho certeza, serão superadas com o tempo. Mesmo assim, a ideologia comum que nos une como estudantes de medicina tem a mesma força que em todo o mundo, e isso faz com que lutemos para melhorarmos a educação médica e a saúde da população brasileira.
Quando eu me formar (aqui não temos nada parecido com os Staatsexamen da Alemanha), conseguirei meu diploma de médico, mas não terei garantia de especialização. Caso opte por especializar-me, e virtualmente todos os médicos o fazem, preciso passar por uma prova que versa sobre as matérias do terceiro ao sexto ano médicos, similar ao vestibular nos objetivos, para poder ser um Residente (assim chamamos os especializandos) em algum hospital de ponta. Mais uma vez, como no vestibular, se eu não passar, deverei estudar por mais um ano até que a próxima seleção aconteça.
Morei todo o ano de 2004 na Alemanha, perto de Darmstadt. Aí, eu aprendi a conviver com outras culturas, consegui dominar um pouco da sua língua e, acima de tudo, aprendi a admirar esse belo país. Fico feliz pela oportunidade de escrever para estudantes de medicina alemães, e estou aberto a qualquer pergunta que possa surgir sobre o meu país. Tentei fazer um panorama de como funciona a educação médica no Brasil. Sei que difere muito da realidade alemã, mas tanto aí como aqui, uma coisa é verdade: os estudantes de medicina tem uma grande responsabilidade em relação ao futuro da Medicina, e isso nos faz mais similares do que pode parecer.