Pesquisar este blog

domingo, 30 de maio de 2010

Um gênio!

O professor era um gênio!

No começo do ano nós chegávamos às sete na faculdade e esperávamos até as dez, que era o momento da entrada do velho e sábio mestre. No calendário estava escrito (conferimos mais de uma vez) que as aulas começariam às sete da manhã em ponto. O ilustre jurista, entretanto, tem lá suas prerrogativas e suas aulas só se iniciavam três horas depois, perante uma platéia de calouros embasbacados com o tamanho imponente da sala e com a pequena estatura do professor. Ele surgia teatralmente na sala, como todo objeto de reverência deve surgir: era uma estátua de algum deus egípcio meio homem meio animal, cuja presença provocava nos mortais duas certezas: a primeira, de que estávamos perto de algo maior do que nós; a segunda, de que por mais que nos esforçássemos, jamais chegaríamos aos sapatos italianos daquele símbolo de jurisprudência.

Não nos pergunte sobre o que eram as aulas pois, como excelentes crentes, apenas nos prostrávamos frente à sabedoria daquele diminuto senhor. Ele divaga e floreava e argumentava e proclamava imputabilidade, tridimensionalidade, subjetividade coletiva. As provas, claro, eram dificílimas, e nisso ele se assemelhava não aos deuses pagãos, que tinham seu quê de humano, mas era bem parecido com o deus do velho testamento. Nosso velho conhecido, esse deus fala certo por palavreado torto e impõe sua mão devastadora sobre seu rebanho. Nós, cordeiros recém paridos pelo vestibular, éramos abatidos durante o semestre pelas duras folhas de papel com o carimbo: departamento de filosofia do direito.Assim como no pentateuco, o professor prevalecia imponente e inabalado. Passou o semestre, passou o ano, e seus livros continuavam sendo leitura obrigatória para todos aqueles jovens e muitos outros que se iniciavam na carreira jurídica.

O velho testamento também tem outros personagens, raros na humanidade mas populosos na Bíblia, que são os profetas. Eles viam o futuro e faziam cânticos e salmos para explicar aos homens os desígnios dos deuses e os caminhos da humanidade. Pois bem: no meio do rebanho existia um escolhido, uma pessoa que viu antes do resto a falta de ânimo e a sensação falsidade em tudo aquilo, o que só se abateria nos outros muitos anos depois. Esse iluminado mostrou aos seus pares a via dolorosa, mas gratificante, de como se livrar de tudo aquilo em tempo de ser acolhido na morada de outras divindades.

Os justos que o ouviram agora estão no reinos dos céus.

sábado, 29 de maio de 2010

O fim de uma pasta azul

Desde o ano de 2004, quando dei adeus a todos e fui para a Europa, mantenho o costume de escrever textos, à mão mesmo, e guardá-los bem longe da vista humana. Muito útil, esse negócio de escrever! Só assim uma pessoa consegue organizar suas ideias e descobrir suas próprias contradições. Além disso, escrevendo você articula o que está na sua cabeça e dá a luz a uma coisa que pode ser um furacão ou uma brisa. Quantas ideias geniais não morreram na hora de saíram ao mundo? Quantas vezes a caneta não emperrou na metade da folha, por simples falta de matéria para gastar a tinta? A crueldade da vida me surpreendeu aos dezesseis anos, quando, debruçado sobre um caderno escolar, com a cabeça no mundo das palavras e com a mão pronta para redigir papeis e papeis, eu simplesmente não sabia por onde - nem sabia se devia! - começar. É nesse impasse que descobrimos se temos ou não algo a dizer.

Ainda não resolvi esse impasse. Talvez por isso mesmo, desde sempre guardo minhas folhas manuscritas numa pasta azul suspensa do mundo material pela bagunça do meu armário. Nela estão contidas muitas de minhas experiências nesses anos cruciais, postas no papel pela necessidade e pela providência: necessidade de escrever e providência de guardá-las sem atormentar nem a mim nem ao mundo. Tenho sempre escrito e na mesma hora guardado na pasta aquilo que produzi. Não nem um arquivo da memória, posto que minhas memórias ainda estão em construção, nem um supositório de sabedoria, já que não há nada mais errôneo do que pedir verdade universais de uma pessoa de vinte anos. Era apenas minha pasta azul, e isso basta.

Pois eis que meu exílio caipira me privou de acompanhar o zelo dos outros com as minhas coisas (minha pouca organização contribuiu para isso, é claro) e percebi tragicamente que a pasta azul sumiu do seu único ponto de contato com o mundo exterior, que era o meu armário. Não estava mais lá quando voltei para casa, e as buscas por ela resultaram infrutíferas. Não, não me sinto privado de mim mesmo com o sumiço da pasta azul. O que sinto é pena por não poder ler de novo as coisas antigas e vividas, aqueles papeis um pouquinho amarelados que contam muito do que fui e do que serei. O fato é que não preciso mais desses textos para me guiar: o pouco que sei do mundo não está fora da minha cabeça, os textos antigos são mais nostálgicos do que formadores, e o conteúdo ou não mais me diz respeito, ou já está incorporado ao meu modo de viver.

Prefiro não pensar que ela está no lixo ou na fogueira, ao contrário, prefiro achar que a pasta deixou de ter razão de existir, percebeu isso e teve um gesto que deveria ser seguido pelos seres humanos, que foi o de saber sair de cena quando não era mais necessária.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

A formação de um velho

O que um velho precisa para ser um? Não acho que rancor seja uma característica deles, nem a solidão, como muitas vezes retrata-se a velhice. Para pintar um quadro da velhice, é preciso molhar o pincel com tons de memória, de reflexão, de paciência - qualidades que podem ser imputadas a qualquer ser humano de qualquer idade, mas cuja associação com uma suposta sabedoria idosa é uma constante na nossa ideação de velhos. Temos assim um belo retrato de um senhor de olhar profundo e enigmático, que encerra em si boa parte das respostas que este mundo exige dos mais jovens. Que crueldade se esse quadro fosse real! "O mundo faz com que respondamos a ele quando temos dezesseis, mas a chave de tudo só nos será entregue aos sessenta anos", é o que pensamos.

Na realidade, se há algo comum a todos os velhos é a experiência, o passado robusto, glorioso ou não, que lhes antecede qualquer ação ou fala presentes, e nisso reside sua especificidade e maravilha. Ser idoso por si só não significa nada além de ter muita experiência, e mesmo ela pode ser proveitosa ou não, boa ou ruim, construtiva ou destrutiva. Para alguns a idade traz sabedoria; para outros, só traz rugas. Dessa forma, somente em algumas pessoas mais velhas encontramos verdadeiras respostas para o mundo, ou algum tipo de sabedoria melancólica. Na maioria dos ilustres senhores de idade, vemos pessoas com as mesmas prerrogativas das demais, excetuando-se um ou outro conselho que pode ser valioso (e que - vá lá - são o embrião de uma sabedoria que poderia ter sido muito maior).

Rugas e ares de memória e saudade são elementos externos suficientes para desenharmos um honrado senhor na nossa frente. Olhando-o para dentro, vemos uma pessoa como todas as outras, que também sofre, também tem orgulho e também está inserida nesse mundo, mesmo que de forma peculiar.



"Os anos que a mim me doem nas costas e nos joelhos levaram-me a dois destinos diferentes, nos quais descanso com a mesma mansidão de sempre: ora sou um muro, ora sou um abismo. Sempre serei, portanto, um final."

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Esboço de prólogo do monólogo?



Não esperem os senhores por grandes verdades universais: aquilo que é produto das horas de descanso jamais atingirá as glórias da imortalidade. As páginas que seguem a este texto introdutório relatam casos e fatos de uma vida anônima e observadora – como todas as vidas devem ser.  Nelas há paciência, não aventuras. Há jardins, nenhuma floresta. Tudo nestas memórias tem o cheiro das rosas que eu mesmo plantei e cultivei durante anos nos canteiros da minha rua. Existe também – os poucos leitores talvez não o percebam – a transparência do orvalho que insiste em molhar as pétalas de todas as flores, minhas ou não, apesar do calor que torra nossas cabeças. Pois em meio a essa lucidez cristalina é que cresceram as idéias que permeiam essas linhas. O Livro do interior? Nome pomposo e incerto demais para as minhas pouco compromissadas digressões de fim de tarde. Eu diria que é o Livro da Rua Ondina. Mesmo assim, os conhecedores dessa cidade distante sabem que a rua que vai da rodoviária à rodovia nada se parece com a minha quadra. Este é, então, o Livro de João. Nada bíblico, entretanto.

Este livro, que leva meu nome, foi gestado aos poucos, no compasso de uma velhice sozinha mas auto-suficiente. Ele cresceu conforme encurtavam meus passos e me serve de bengala, o que não quer dizer que ele possa se sustentar sozinho. Como tantos outros textos antes dele, corria o risco de ser um natimorto, abandonado antes mesmo que qualquer pessoa lhe pusesse os olhos em cima. Seus antecessores hoje ocupam o interior de umas pastas azuis guardadas em cima de meu armário, mas estas memórias que aqui vão redigidas sintetizam todas as outras, ficcionais ou não. As pastas azuis não estão reviradas nem dispensadas da vida útil como pode sugerir o quadro pintado em tons pastéis de quatro ou cinco arquivos em cima de um guarda-roupa, com a fraca luz do fim tarde iluminando parte dela, à frente de uma parede escura pouco nítida. O artista que o pintou, além de terríveis técnica e dom, não soube entender o que via. Quis – pobre dele! – retratar a velhice, a solidão, a perecibilidade das palavras escritas, mas nunca lidas. O que ele via não eram resquícios da minha velhice medíocre: eram apenas papéis, muito bem organizados por data, os mais velhos embaixo dos mais novos, pouco consultados, admito, mas expostos a mim mesmo como um cemitério de idéias com grandes e chamativas lápides.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Para quem a vida é fácil

O que esperar de um filme que fez estardalhaço ao ser lançado, que foi dirigido por um diretor conhecido, que tem um elenco global e que, ainda por cima, trata de dois temas dos mais espinhosos no nossa modernidade que são o incesto e a homossexualidade? Conflito, muito conflito. Entretanto, contrariando todas as expectativas, nada disso encontra o espectador de Do começo ao fim, filme brasileiro de 2009 que eu só vi semana passada,  numa sessão especial aqui em Rio Preto.


O enredo é facilmente divido em duas partes: uma antes e outra depois da morte da mãe dos irmãos protagonistas. A mãe, Júlia Lemmertz, é talvez a melhor personagem de todo o filme porque é a única a sofrer, a se questionar e a investigar com seu olhar a convivência de seus dois filhos, antevendo o futuro relacionamento amoroso entre eles. Ela começa a estranhar as carícias e as brincadeira dos irmãos, e nesse estranhamento reside o ponto alto do filme, que é a atuação silenciosa da mãe perante uma situação que é das mais perturbadoras para nossa cultura. Enquanto as filhos pequenos se beijam na bochecha e brincam de médico, vemos a mãe chorar olhando pela janela e ouvir conselhos do ex-marido, e em nenhum momento a questão do incesto é escancarada. Ela não comenta nem briga com ninguém, mas sua imagem deteriora-se, fumando cigarro e sentada à mesa no jardim da casa em que mora. Só uma vez tem-se um diálogo que vale a pena no filme, dela com o filho mais velho, que começa com a velha e enigmática frase "não tem nada que você queira me contar?" e que termina tao inconclusivo como começou. Ficamos sem saber o motivo de se sofrimento, não sabemos sequer se era por causa da homossexulidade, do incesto ou dos dois.

A partir desse momento, o filme degringola. Afastam-se todas as fontes de conflito que poderiam preocupar os protagonistas: anos depois, a mãe morre, assim como o pai do mais velho e o pai do mais novo muda-se de casa. Os irmãos já estão mais velhos, envolvidos amorosa e fogosamente, e vivem num mundo aparte, num idílio impensável para um casal incestuoso. São felizes, ricos, bonitos e jovens, não tem muito contato com o resto do mundo nem passam por nenhum questionamento sobre sua condição. Dessa forma, Do começo ao fim criou dois personagens estranhíssimos: são homossexuais mas não passaram por nenhum momento de repressão; têm um relacionamento incestuoso mas não entram em conflito com o mundo à sua volta. A grande questão proposta para o futuro do relacionamento dos dois é a viagem do mais novo à Rússia para treinar natação. A distância provoca crises de ciúmes e saudades, sanadas com um chorinho e juras de amor eterno; e o filme termina com a visita do mais velho ao irmão em Moscou, com um abraço e um beijo digno da novela das oito.

Se é verdade que de tudo fica um pouco, como diria Drummond, de Do começo ao fim fica muito pouco. Talvez só a constatação universal, nossa velha conhecida, de que a mãe sempre sabe...