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quarta-feira, 23 de junho de 2010

Travesti não é bagunça


Ela não se aguentou e foi mais rápida do que a enfermeira sentada num banquinho de madeira, que só teve tempo de balançar as mãos: com um só movimento desesperado agarrou a seringa da bancada, enfiou no próprio braço e correu para trás da porta. Gritou, é claro, mas não tanto quanto se espera de uma pessoa que se fura com uma agulha de forma tão violenta, uma vez que a noite e a profissão já lhe deram pontadas mais doloridas. Quem berrou de verdade foi a enfermeira, e tal, não a voz rouca de um travesti com pouco dinheiro para comprar regularmente os comprimidos de hormônio, trouxe para a salinha de enfermagem alguns médicos atônitos e poucos pacientes curiosos. 

Travesti não é bagunça, ela exclamava como um feirante no domingo, travesti é gente, eu to passando mal, enquanto extraía de si um sangue roxo que era sugado de um braço amarelo, entre uma pelanca e outra, perto de muitos outros furos por ali. Chegara às cinco da manhã para receber as injeções que precisava, queria conversar com aquela médica que a atendia, mas até aquela hora ainda não a haviam chamado para a consulta, como na maioria das vezes em que ia lá.Toda ela tinha dobras e furos, não só no antebraço viciado, mas também no pescoço queimado, na boca vermelha, no queixo via-se uma cicatriz, os olhos cobertos por pálpebras enrugadas e molhadas, o resto da face tinha rugas, furúnculos, herpes, a barba já tinha voltado a crescer, coçava muito.

Novos gritos: a notícia de um travesti armado chegou à fila que espera atendimento, aos doentes enrolados em macas no corredor, à cadeira de rodas desconfortável que aquela velha rangia toda vez em que mexia o corpo. Socorro, ela em AIDS, ela vai furar a gente, eles gritavam lá fora, a enfermeira gritava ainda dentro da sala, os médicos não sabiam o que fazer, uma pessoa riu ao fundo e a travesti – cujo nome era José, Layla, Luana ou Michaela, esse último na Itália -, não é bagunça, sai de perto de mim, já tinha enchido o tubo com sangue contaminado, apontava a agulha na direção de todo avental que via pela frente.

O sangue, o vírus jorravam da arma e respingavam no chão branco, nos papéis amarelos, na pele bronzeada dos médicos e nos óculos da enfermeira. A travesti ria, bagunça, putaria, deixa eu sair daqui, mas também estava assustada, principalmente quando alguém saltou sobre ela para tirar a seringa daquelas mãos masculinas. Sangue e suor se misturavam em seu braço, ela estava quente, nervosa, o furo da agulha ainda pingava, e os cabelos se debatiam ao redor de uma cabeça sem rumo. E em cima daquela maquiagem, daquela pessoa tão precariamente montada com batom e blush, um mundo de graduados, doutores, técnicos, subiu em cima. Já antes em sua vida incontáveis homens cultos e estudados lhe haviam subido em cima, agarrado suas mãos e seus ombros, apanhara de muitos deles, batera em outros tantos, mas nunca sem antes negociar um preço razoável nem sem poder se defender como merecia, e José se viu pela segunda vez humilhada naquele posto de saúde. Arranhou um rosto que chegou perto do seu, mordeu um antebraço peludo envolto ao seu pescoço e resolveu usar sua arma improvisada contra os agressores.
A travesti deu agulhadas em todos os pedaços moles da enfermeira, que eram muitos. Ela tinha se prostrado na frente de Layla, a quem a raiva aflorava os instintos da noite e cujos braços estavam imobilizados pelos médicos, mas os punhos continuavam móveis e com eles, mais uma vez, ela ganhou a vida. As duas estavam de pé, as duas descabeladas e gritavam, puta, gorda, filha da, viado, mas uma delas dominava uma agulha muito melhor que a outra, as escolas onde estudaram eram distintas e os intuitos que propulsionaram a aprendizado também, sendo natural que quem aprende por sobrevivência saiba mais do que quem lêlivros e faz provas. Dez agulhadas, essa foi a conta da perícia, dez estocadas de uma agulha usada injetaram consideráveis milímetros de sangue positivo na enfermeira, sob o olhar medroso de médicos e pacientes, um volume domesticado por infindáveis pares de braços que sufocavam os peitos de silicone.

A gritaria acalmou. As mulheres choravam, os homens bufavam, José estava com lágrimas nos olhos, mas no pescoço tinha todas as veias saltadas, estatelada no chão, indefesa e louca. A junta médica pegou-lhe pelos ombros, e a atou com lençóis novos do almoxarifado, enjaulando-a atrás de uma mesa de prontuários sujos de sangue. Um animal de sexo indefinido, ela deixou-se dominar pelos chicotes dos donos do circo, sob os aplausos vívidos do público. O chão era rosa e branco, a seringa partira-se no meio, o vidro, o plasma, o HIV esparramados na enfermaria, tudo era anti-higiênico, e ainda pingavam gotas escuras das duas mulheres.

Como sempre ocorre nos casos de polícia, a oficialidade foi a última a entrar em cena: um guarda à paisana também esperava para ser consultado, e, herói da corporação, levantou-se de seu lugar, dirigiu-se até a enfermaria – em que pese suas terríveis dores nas costas - e à travesti já contida e já impedida de dizer o que queria imputou o terrível teje preso, o que seria o cúmulo da crueldade não fosse necessário, para o bom andamento da justiça e da sociedade em geral, seguir à risca o devido processo legal. O policial, esse também um José, recebeu apertos de mão dos espectadores esquecidos de suas enfermidades, amparou o choro da enfermeira, vou morrer, AIDS, acabou tudo agora, tenho filhos pequenos, conversou com os médicos aliviados, a psiquiatria precisa dar seu parecer, preparemos o coquetel para a coitada, assim que tirarem o viado daqui a gente continua o antendimento, e deu três batidinhas na sua identificação corporativa antes de voltar a seu lugar: nada como cumprir bem o serviço!



Fonte nessa notícia de jornal, e prestem atenção aos comentários construtivos...


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