Pesquisar este blog

sábado, 29 de maio de 2010

O fim de uma pasta azul

Desde o ano de 2004, quando dei adeus a todos e fui para a Europa, mantenho o costume de escrever textos, à mão mesmo, e guardá-los bem longe da vista humana. Muito útil, esse negócio de escrever! Só assim uma pessoa consegue organizar suas ideias e descobrir suas próprias contradições. Além disso, escrevendo você articula o que está na sua cabeça e dá a luz a uma coisa que pode ser um furacão ou uma brisa. Quantas ideias geniais não morreram na hora de saíram ao mundo? Quantas vezes a caneta não emperrou na metade da folha, por simples falta de matéria para gastar a tinta? A crueldade da vida me surpreendeu aos dezesseis anos, quando, debruçado sobre um caderno escolar, com a cabeça no mundo das palavras e com a mão pronta para redigir papeis e papeis, eu simplesmente não sabia por onde - nem sabia se devia! - começar. É nesse impasse que descobrimos se temos ou não algo a dizer.

Ainda não resolvi esse impasse. Talvez por isso mesmo, desde sempre guardo minhas folhas manuscritas numa pasta azul suspensa do mundo material pela bagunça do meu armário. Nela estão contidas muitas de minhas experiências nesses anos cruciais, postas no papel pela necessidade e pela providência: necessidade de escrever e providência de guardá-las sem atormentar nem a mim nem ao mundo. Tenho sempre escrito e na mesma hora guardado na pasta aquilo que produzi. Não nem um arquivo da memória, posto que minhas memórias ainda estão em construção, nem um supositório de sabedoria, já que não há nada mais errôneo do que pedir verdade universais de uma pessoa de vinte anos. Era apenas minha pasta azul, e isso basta.

Pois eis que meu exílio caipira me privou de acompanhar o zelo dos outros com as minhas coisas (minha pouca organização contribuiu para isso, é claro) e percebi tragicamente que a pasta azul sumiu do seu único ponto de contato com o mundo exterior, que era o meu armário. Não estava mais lá quando voltei para casa, e as buscas por ela resultaram infrutíferas. Não, não me sinto privado de mim mesmo com o sumiço da pasta azul. O que sinto é pena por não poder ler de novo as coisas antigas e vividas, aqueles papeis um pouquinho amarelados que contam muito do que fui e do que serei. O fato é que não preciso mais desses textos para me guiar: o pouco que sei do mundo não está fora da minha cabeça, os textos antigos são mais nostálgicos do que formadores, e o conteúdo ou não mais me diz respeito, ou já está incorporado ao meu modo de viver.

Prefiro não pensar que ela está no lixo ou na fogueira, ao contrário, prefiro achar que a pasta deixou de ter razão de existir, percebeu isso e teve um gesto que deveria ser seguido pelos seres humanos, que foi o de saber sair de cena quando não era mais necessária.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. O sumiço da sua pasta azul me remeteu à um texto do Verissimo no qual ele relata a fuga de seu par de sapatos.

    "Eu costumava tirar os sapatos no cinema até que um dia fui recalçá-los - e não os encontrei. Não pensei em roubo nem em ratos. Por alguma razão, imaginei que eles tinham fugido. (...) E finalmente andariam sozinhos na rua, sem o meu peso para oprimi-los."

    Talvez a pasta azul tenha fugido, tão só, sem o peso de ser sua memória para oprimi-la.

    ResponderExcluir