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sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Um trecho




"(...) Para quem quase nunca tinha viajado para o exterior, seus conhecimentos de Paris à época eram bastante avançados. Flanava pelo Quartier Latin como outrora subia e descia os morros de Perdizes e inspirava os ares da França como um tuberculoso à procura da cura. Conforme os anos passaram e ele se tornava íntimo da cidade, algo mais ocorria ao caminhar pelas ruas daquele lugar: ele sentia como se a própria Paris lhe indicasse os caminhos que percorria na noite e na vida, e em cada esquina ele tinha uma história para contar aos descentes, quando eles visitassem Paris. Quando voltou, passou a repetir essas histórias para seus convivas, aumentando a antipatia com que ele envolvia sua própria figura. Nunca terminava um drink sem contar para alguém da vez em que se perdera, na madrugada, pelo 3e arrondissement ou de quando participou da coletiva com tal membro da Légion d'Honneur.

No Brasil, ele até tentou estabelecer uma versão tropical de sua vida parisiense. Tentou arranjar uma padaria que no mínimo emulasse sua boulangerie cotidiana, mas não conseguiu se satisfazer. Igualmente, não encontrou em toda a cidade uma única praça que lhe agradasse e fizesse as vezes do Bois de Bologne. Acima de tudo, tentou mais de uma vez, mas o Obelisco do Ibirapuera jamais chegaria aos pés da magnânima Torre Eiffel. Como conseqüência, sua vida cultural esmoreceu, as leituras rarearam e o jornal, que desde antes pouco lhe pagava, menos ainda passou a dar ao nosso homem.

O resultado disso já era esperado: o sujeito ensimesmou-se e se tornou ainda mais do que um chato: virou um ranzinza. (...)"

Trecho de um rascunho a ser publicado quando o texto - e eu mesmo - estiver pronto. 

As coisas se constroem lentamente, tanto na vida quanto na literatura.

sábado, 31 de dezembro de 2011

Até aqui

Até aqui, cheguei. Foi assim que Saramago rompeu seu romance com Fidel, depois de décadas de abusos até que, num ano perdido da década passada, ele resolveu não mais tratar o ditador como amigo: o cubano tinha acabado de assassinar líderes da oposição. Eu, que nada tenho a ver com isso, uso a mesma frase para vaticinar o fim de uma era: passo, a partir do mês que vem, a fazer parte do mágico mundo dos smartphones. Causa estranhez aos mais chegados saber que, eu, um chato dos maiores, estou prestes a ter um iPhone. Pois é assim: o mundo nos consome mais rápido do que o tempo que temos para conhecê-lo e o sujeito que lhe tenta travar as voltas acaba girando a contragosto.

No fundo, isso é mais um estímulo à fuga da zona de conforto, essa região maravilhosa onde tudo que existe é seu ou do seu gosto, onde o vento sempre ameniza o calor e o planeta, ao rodar, toma cuidado para não te machucar. Eu gosto muito de sair dessa zona (que me é bem amena, diga-se) e em todas as minhas escolhas importantes eu sempre me enfiei, de propósito, no árido e pouco recompensador: Alemanha, Medicina, escrita. Não é muito, elencado-se em um blog desimportante, mas já é bastante, considerando que eu pensava, até cinco anos atrás, que passaria a vida de terno e gravata.

Se cheguei até aqui, é porque soube me pôr em perspectiva. E sendo eu o objeto daquilo que eu mesmo via, muitas vezes me estranhei e me modifiquei. Isso explica muita coisa, mas a quem tais explicações interessam, a não ser eu mesmo? (Fosse esse blog um diário, e discorreria aqui sobre teorias que não poderiam resistir a meio hora de terapia. Não é o caso, entretanto, já que esta página da internet que me cabe não tem propósito algum, muito menos o de servir de pensata sobre mim mesmo.) E agora, no alvorecer do ano novo, me rendo à novidade e transformo em 2.0.

Encontramo-nos noutro sítio, como disse o mesmo Saramago, e adeus.


sábado, 26 de novembro de 2011

Um mau uso de termos

A loucura é insidiosa. Olhando pra trás, ela sempre esteve lá, às vezes vestida de graça, às vezes explodindo em fúrias, no começo um comichão na vida da pessoa, para depois se transformar na sombra-luz que ocupa a mente dos outros. Digo dos outros porque o maior disfarce da loucura é contra o próprio louco, fazendo com que a insanidade mental seja uma das poucas características humanas que se alcunham de alheias sem muita perda de sentido,

O maluco começa como algo entre o excêntrico e o cômico - é a mulher que não abotoa a saia, o estudante que muda de faculdade, a menina que adora intrigas. É uma gente que no geral vive, mas está no limiar da sobrevivência. Mais uma vez, a loucura é mestre em se esconder, de modo que as pessoas acham que não estão sob seu domínio. Hordas de homens e mulheres são assim, e assim continuam até o fim de seus dias, sendo a maioria considerada sadia. Mas para muitos outros, que às vezes até se confundem com o todo mundo no andar cotidiano, as coisas mudam de sentido, acendem-se lâmpadas que escurecem tanta coisa: o parto de um alienado é feito de sofrimento alheio, já que para ele o nascimento é natural.

Nascido, o alienado não difere do sadio, já que à mudança de equilíbrio mental não se sobrepõe outras diferenças: no dia em que conseguirmos identificar os novos loucos, veremos neles os nossos próprios rostos. A lentidão é a marca da loucura porque aquele que surta é o mesmo que vem colocando pólvora no canhão da mente há anos, décadas.

A loucura tem seus engenhos...

domingo, 16 de outubro de 2011

A canção em mim

Mais um filme que me desafiou. Trata-se de Das Lied in mir, que em português e em outras línguas virou O dia em que eu não nasci. Assisti no Reserva, aproveitando esse meu tempo de indulto, já que hoje mesmo volto para longe, muito longe, de tudo isso.

Eu, que há muito deixei de acompanhar as mudanças quase que semanais dos filmes em cartaz em São Paulo, acabo por me achar perdido diante das possibilidades que os roteiros e guias me oferecem. Não sou mais, como era antes, um ávido frequentador das salas de cinema, nem mais monto roteiros, textos, histórias na minha cabeça enquanto vivo a minha vida. Por isso, segui conselhos, li sinopses (antigamente, algo impensável e abominável) e joguei búzios para escolher um filme que me apetecesse. Pois bem, caí numa fita alemã, rodada em Buenos Aires, que mistura três lúnguas: o inglês, o espanhol e, é claro, o alemão. Só por isso, chamou-me a atenção, paguei e fui.

Esperava algo mais lento, mais reflexivo, do jeito que gosto ao se tratar de uma história da força que o roteirista do filme se propôs a rodar: uma mulher que descobre ser filha de desaparecidos da ditadura argentina, tendo sido levada para fora da Argentina por novos pais alemães, que a esconderam da verdadeira família. O filme, então, seria facilmente levado para o emocional, o psicanalítico, o subjetivo, ou pelo menos era isso que eu esperava quando a tela nos mostra a mulher nadando, depois viajando de carro, depois de avião e por fim esperando o embarque de uma conexão no aeroporto de Buenos Aires.

No entanto, a história que poderia ser a da descoberta de uma nova identidade, ou de um passado novo, é iniciada da forma mais abrupta possível, jogando-nos a uma situação absurda que, se continuasse no absurdo, seria sublime: uma canção de ninar em espanhol faz a alemã chorar por todos os poros no meio do aeroporto. Não é preciso ser um ás da psicanálise freudiana para entender do que se trata: o inconsciente da mulher se lembra da canção, cantada pela mãe desaparecida, da qual ela não tinha conhecimento. Pois esse acontecimento é o gatilho para que se descortine o real passado da protagonista, relatado pifiamente pelo pai alemão, que vai ao seu encontro em terras portenhas.

O resto é um quase embate, uma quase história, um quase drama. Não vemos nem amor nem sofrimento, apesar de o sexo e as lágrimas estarem presentes. Uma pena, pois a locação, os idiomas e o próprio motto do filme renderiam algo magistral. Mesmo a direção sendo precisa, a falha no roteiro e na condução dos personagens nos faz lamentar por um filme que poderia ter sido muito melhor.

Admito que meus hábitos cinéfilos tenham se arrefecido com o decurso desses últimos três anos. Admito, também, que muitas das minhas convicções e da minha visão de mundo tenha mudado. Não admito, entretanto, que o cinema, a experiência cinematográfica e a delícia de desvendar um filme seja levado ao segundo plano na minha vida, e por isso resisto bravamente aos profetas que me apontam o dedo e dizem: és médico, não és sensível nem inteligente para a silverscreen. A tal gente, sugiro que assista a Das Lied in mir.

Aos interessados: http://www.dasliedinmir.de/

domingo, 17 de julho de 2011

Dos objetivos do milênio

Às vezes eu esqueço por que faço medicina. Que bom que o ócio de Julho, a Internet e outras coisas mais me fazem lembrar de muita coisa. Reli sobre os Objetivos do Milênio, e desse assunto ressurgiu o verdadeiro motivo da minha motivação para meu curso. Me perguntei: dos oito objetivos do milênio, quantos dizem respeito à saúde? O resultado foi mais do que um post. Foi um clareamento da mente, muito salutar nesses tempos de limbo.

Se considerarmos saúde num sentido estrito e meramente médico, três dos oitos objetivos são temas relativos à saúde pública: saúde infantil, saúde materna e combate ao HIV/AIDS. Se, no entanto, nos atentarmos para o conceito de saúde como área do conhecimento que ultrapassa os muros do tecnicismo, somos obrigados a reconhecer que todos os objetivos do milênio enunciam, de alguma forma, temas que estão no centro daquilo que é chamado de saúde global.

Fim da miséria e da fome, educação universal, igualdade de gêneros, sustentabilidade ambiental e a construção de uma parceria global são bandeiras calcadas nos solos da saúde pública, da democracia, da justiça. Tais terrenos, apesar de diferentes, são feitos da mesma terra, e é impossível tentar cuidar de um sem cuidar de outro, sob a pena de ver todas aquelas bandeiras perderem seu sustento.

Dessa forma, pensar em objetivos do milênio significa pensar na saúde pública que pretendemos construir. E, conjuntamente, como queremos moldar a sociedade deste nascente século XXI. Por mais difuso que pareçam, os oito objetivos do milênio constituem uma forma suficientemente abrangente de abordar problemas sociais (sanitários, educacionais, jurídicos, ambientais) cujas raízes profundas impedem uma poda eficaz, mas cuja natureza pode ser revertida.

Acima de tudo, me anima ver como a medicina é um veículo de mudança presente nos objetivos do milênio. É empolgante saber que sua profissão tem tamanho poder, e que suas possibilidades e responsabilidades são cada vez mais importantes, necessárias e visadas. Ser médico, numa situação de calamidade global como a que vivemos, é ser capaz de agira em diversos níveis, diversas frentes, desde o contato direto com a criança faminta, até o processo político de fazer com que sua família tenha condições de comprar-lhe o alimento.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

As teorias...

Momento de introspecção: nessas horas eu sempre me volto aos livros. Eles são momentos fundadores da (minha) educação, de volta ao tempo em que eu, da forma mais efêmera possível, vivi no meio das ciências humanas. Às vezes, sinto vontade de me voltar um pouco mais para essa área, que, ao meu ver, se completa tanto com a medicina.Naquela época, eu fingia ser um weberiano que xingava alguns marxistas. Tudo pose, claro, já que nem outrora, nem hoje em dia, sou um conhecedor disso tudo.

Foi isso que eu escolhi: larguei uma formação superficial, em termos teóricos, por outra um pouco mais profunda, mas mesmo assim tão prática que me prende a certos conhecimentos que, não necessariamente, me agradam. Claro que estou gostando, ninguém aguenta a faculdade de medicina sem gostar do que faz. Mas é que cansa, endurece o pensamento, um senso prático (fundamental, eu sei, eu sei...) que impregna tudo o que fazemos. Por exemplo, consegui incutir em mim mesmo um senso comum que me faz me sentir um estranho ao tentar, nessas férias, recuperar um pouco da teoria - livros, livros - que seguem caminhos recusado por mim, há alguns anos.

Não é uma acrasia. Não envolve meus valores profundos, nem é um desafio à minha liberdade. É apenas uma manifestação daquilo que sempre faço, e que tanto tempo me consome, cá com meus botões: constantemente passo em revista tudo aquilo que sonho, desdenho, já fiz e estou fazendo. Só espero que com isso eu não viva na inação.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Algo de novo no velho front

Uma nova semana em São Paulo. Teatro Municipal, comida indiana, metrô novo, certas tristezas, outras alegrias. Me lembro daquele poema do Drummond que diz que o amor é uma coisa que hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será. Velhos amigos, novos amigos, a vida que segue, meio mudada, meio igual. Eu que, ao mesmo tempo o de sempre e algo diferente, tenho antigas e recentes conversas, companhias, experiências, lugares à minha volta.

Como sempre, fui ao cinema, ao teatro, aos cafés, às mesmas ruas por onde flano desde pequeno. O "como sempre" esconde muita coisa: é verdade que a ação externa é a mesma, é verdade que mesmo os novos amigos se parecem com os de antes. Mas a cidade, as pessoas e o mundo todo muda, e o eu que hoje passeia nessas férias vê o mundo com outros olhos, com outra mente e com uma calvície que segue a despeito da Finasterida (os sonhos, esses sim antigos companheiros, mudaram pouco, muito pouco).

E é como se a distância, a medicina e os livros, sempre os livros, pusessem tudo em uma perspectiva alternativa: o tempo, que antes era infinito; o futuro e a profissão, que eram entidades etéreas; eu, que me conhecia tão pouco, apesar de achar que me conhecia tão bem. O relativista franzirá as sobrancelhas: você que mudou, não o seu conhecimento sobre você que se alterou. Não seja ingênuo, relativista... Aquele que mudou continua sendo eu mesmo, e, conhecendo-me melhor, modifico-me mais ainda. A vida não se repete, apesar de, às vezes, andar em círculos.

Sou uma pessoa livre, a priori, pelo menos é o que me dizem (não um amigo, mas um filósofo no papel). Que estranho ser assim: o tempo corre mais rápido do que minhas pernas, sou livre mas nem sei o que é isso e no meu nariz ainda persiste o cheiro de quem foi embora.