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domingo, 27 de março de 2011

Uma noite, no teatro

Na semana, fui ao teatro.

Tratava-se de uma peça bonita, de São Paulo, encenada num palco simples, porém extremamente poético. Simples porque parco de objetos e de cores extravagantes, mas extremamente complexo em sua composição, e dessa complexidade posso dizer que a encenação era poética: no instante inicial do ato único, a personagem forma, com areia, um grande círculo que ocupa toda a porção central do tablado, iluminado por um holofote que não ofusca nossos olhos e dão uma impressão onírica que se confirma com o andar do espetáculo. Fora desse círculo, que em pouco tempo sabemos representar a memória da personagem condutora da ação, encontram-se uma cadeira e uma mesa cuja utilidade é contrapor-se ao passado como um presente sempre presente, mesmo que nossas atenções se voltem ao que já foi, há tantos anos. Além disso, nada mais. Com tamanho minimalismo, sem ironias nesta expressão, construiu-se o palco para a trama.

O enredo, aprendemos desde logo, não se passa nem no presente nem no passado dessa família imigrante cuja história vamos conhecendo fragmentadamente. O enredo, na verdade, se passa na cabeça da filha, uma mulher na "meia-idade" que relembra a figura odiada do pai, a pobre mãe jogada à viuvez com o marido vivo há quilômetros, a vida paulistana de uma familia recém-imigrada do Líbano abandonada por aquele que lhe devia prover sustento. Esse pai, um canalha que só no teatro pode existir, deixa a família libanesa de lado para se aventurar na construção da Transamazônica e se apaixona por uma nativa, uma morena de pernas nuas que dá graça a toda a encenação.

A história vai como desde o começo ela se mostra: o pai larga a família e se degraça ao mesmo tempo em que os militares desgraçam a rodovia e o País. Quanto à mãe, fica sozinha com os filhos para criar, dentre eles a menina mais nova, que pouco conheceu do pai e que, durante todo o espetáculo, comanda a ida e vinda dos personagens de um ponto exterior ao círculo central para dentro daquele centro, que é simplesmente uma interface ente o passado pessoal daquela família, o passado histórico deste país e a própria consciência da mulher, que interage com os personagens como um deus que sabe o futuro de tudo e de todos.

Se o enredo não nos surpreende, surpreende-nos a contrução dos personagens, tema tão banal que só a um diletante como eu pode impressionar. De resto, tem-se algumas impressões positivas sobre a peça, como o retrato de uma família estrangeira em plena São Paulo dos anos 1970, a crença numa loucura militar que consumiu milhares de vidas desacreditadas pelo mesmo governo que as plantou naquele lugar onde pereceram, e a leve sensação de que este país retratado não existe mais.

Voltei contente para casa. O teatro - a arte - se não eleva, pelo menos consola.

quinta-feira, 17 de março de 2011

O sentido velho do termo

Nessa semana apresentei o comitê local da IFMSA aos primeiranistas da minha faculdade. Interessante essa sensação de ensinar algo a alguém. "Digo ensinar" no sentido velho do termo, no sentido desgostado por muitos, inclusive por mim, mas que dessa vez travestiu-se de "fardo do homem branco" e pôs a mim mesmo na frente de uma sala cheia de olhares esperando que eu lhes colocasse na cabeça um pouco do nosso trabalho local.

Quanto preconceito num parágrafo só! Não é verdade que os calouros procuraram nossa capacitação em busca de uma transferência bancária de conhecimento, nem é verdade que a malfadada expressão de Kipling seja aplicável às minhas ações. Pelo contrário, nosso trabalho é o de espalhar o entendimento mútuo e a pacificidade nas relações humanas. E, ainda por cima, chamamos a atenção de muita gente interessa da a cooperar conosco.

Talvez tenha falado besteiras, à primeira vista. Mas não falei nenhuma besteira de verdade. E o que deveria ter saído um texto sobre minhas expectativas para o resto desse ano virou um mosaico de reflexões à ponta do dedo, sem profundidade maior do que aquela que seus olhos podem ver.

Até a vista!

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Janeiro

Se existe um lugar no inferno para blogueiro relapsos, certamente já tenho reservada minha cota de chamas eternas.

O fato é que, mesmo pondo como meta escrever ao menos um post por semana, essa vida de estudante de medicina me impediu de ao menos cumprir essa mínima quantidade. É verdade que as causas para tal desleixo não são meramente exógenas, se me permitem falar nesses termos, já que a inércia e a falta de disciplina não se explicam pelos outros ou por fatores externos, senão por nós mesmos, nossas fraquezas e nossos vícios.

De qualquer forma, as férias chegaram e já estão indo, pouca coisa foi publicada, mas muito foi produzido, o que me fez pensar na utilidade de um blog como este, mas isso não é matéria para um feriado tão agradável! No mais, pouco foi visto ou vivido, e admito que de vez em quando é bom ficar quieto assim. Semana que vem voltam as aulas, essa faculdade vai finalmente deslanchar e, quem sabe, decido alguma coisa desta minha vida tão... livre!

(como soou falasa a última sentença. Ai daqueles que escrevem uma frase como ela e não se pegam a repensá-la mil vezes!)

sábado, 25 de dezembro de 2010

Maria Rosa

Seu nome é o mais pobre de todos: mistura Maria, que de tanto usado já não tem sentido, e Rosa, que virou sinônimo de flor para nossas cabeças tão urbanizadas. Qual a beleza disso? Além de composto e curto, seu nome é feio. Eu não te amo, Maria Rosa.

Rosa, uma cor que, com outro nome, teria o mesmo tom morto como a sua face, vazia de expressão. Olhe só para você mesma: não se move, não respira nem me sussura belas palavras. Seus dedos já não se entrelaçam no meu cabelo, nem massageiam meus ombros depois de um dia inteiro de amor. E pensando bem, seus olhos sempre foram assim meio ocos, meio zombeteiros. Você me via ou via através de mim? Era a mim que jurava amor, ou a outro às minhas costas, em quem você deitava seu olhar inexpressivo enquanto eu te abraçava sem força? Maria Rosa, meu primeiro amor, se antes sua língua tremia com todo o fel que pode haver neste mundo, hoje suas palavras soam como ecos de sabedoria de uma vida passada, de uma existência finda. Não te ouço porque nos distanciamos: eu, um não-amador, fico sem a não-amada. E você, que se dane nessa sua cama solitária.

Tinha aquela toalha de mesa, lembra?, um pano marrom, meio cinza, que escurecia o desjejum como o café que se mistura à claridade leitosa da manhã. Sua cadeira, do outro lado da mesa, ficava sempre vazia, e é por isso que não vai me fazer falta a sua ausência matinal. O pão era repartido, as guarnições fartas e até mesmo o leito era resfriado, tudo contado para dois, tudo miseravelmente resplandecente sobre um borrão de tristeza velho e marrom, como se fosse um objetivo vindo dos seus sonhos envoltos em lençóis brancos. Agora você dorme como sempre dormiu, nos meus momentos de maior solidão: seus olhos sempre fechados, sua boca sempre quieta, sua mãos, imóveis. E seus pés que se enrolavam na roupa de cama a cada espreguiçada agora caem sobre o pano branco que te levará para onde colocarem seu corpo. Maria Rosa, quanto tempo da sua vida você não perdeu na cama, enquanto o sol a pino já acabava com a manhã!

Agora é tarde, Maria Rosa, para se levantar. Seus olhos não vão se abrir porque seu sono tem agora outro berço, e a rigidez com que suas mãos pairam sobre seu peito não mais indicam a serenidade de uma noite bem descansada. Acabou, você perdeu a sua chance de se sentar comigo à mesa, de compartir do pão e da manteiga, do café e da prataria.

Eu não te amo, Maria Rosa, mas como eu queria que você tivesse levantado mais cedo pelo menos uma vez!

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Uma outra manjedoura

São ecos de uma rabugem que cai mal à nossa idade: percebemos as luzes, a decoração que finge inverno, as mesmas melodias cheias de sinos para em seguida fungar em reprovação, balançar a cabeça repressivamente e fazer algum comentário ácido sobre as pessoas que param o trânsito e observam, maravilhados, os enfeites de Natal. Não digo que a maioria seja assim tão avessa às festividades dessa época do ano, mas estou certo de que é considerável a parcela da população desta cidade que despreza tudo isso, diz que odeia a Natividade e não vê a hora de passar para 2011. Eu, na minha modesta opinião de desterrado paulistano, reprovo, caladamente, a arrogância dos rebeltes natalinos, apesar de definitivamente não fazer parte da massa que chora com o "jingle bells".

Na verdade, penso que o Natal e todo esse fenômeno que vemos por São Paulo nessa época deve ser vivido e analisado como ele verdadeiramente é: uma bela jogada de propaganda. Vende-se muito, gasta-se e se ganha muito dinheiro por aí, o que, capitalistamente, é o grande milagre de Cristo. Para a cidade, é uma maravilha de verdade: quanta gente não vem visitar e sai daqui com uma boa impressão? Quantos não são os cansados que, radiantes, fogem daqui de supetão como se tivessem poucos dias para atravessar a Galiléia? Na equação dos que saem, dos que ficam e dos vêm, temos uma São Paulo mais atraente aos de fora e mais útil aos daqui. Nisso reside o tal do "espírito natalino", que as pessoas pensam que existe, mas que é nada menos do que uma simples mudança de atitude motivada por questões puramente materiais: no Natal, paramos de andar olhando para o nada e com a cabeça em milhões de prazos e compromissos para prestar a atenção à cidade, elogiando-a ou a criticando.

No final das contas, descobri que adoro turistas por aqui! Um amigo, metido a análises, disse que eles fazem bem para o ego. Eu digo apenas que fazem bem à cidade, e isso basta.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Naquela época

Naquela época, estudava Direito, no Largo São Francisco, resignado a ser um profissional liberal, apesar de, no fundo, já querer ser um escritor. O ônibus todo dia o levava de casa até o centro da cidade, em meio aos mendigos, aos automóveis e à falta de educação. As manhãs eram cinzentas como sempre foram naqueles tempos, os jornais não traziam boas notícias, as pessoas adoeciam e se encolerizavam. Mesmo assim, ele era confiante. Pensava no futuro, o passado ainda não havia, o presente até que tinha suas vantagens, e a paisagem lhe inspirava sofisticados devaneios, mesmo sendo um cemitério de edifícios como aquela São Paulo do começo do século.

Nobel para Vargas Llosa