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sábado, 25 de dezembro de 2010

Maria Rosa

Seu nome é o mais pobre de todos: mistura Maria, que de tanto usado já não tem sentido, e Rosa, que virou sinônimo de flor para nossas cabeças tão urbanizadas. Qual a beleza disso? Além de composto e curto, seu nome é feio. Eu não te amo, Maria Rosa.

Rosa, uma cor que, com outro nome, teria o mesmo tom morto como a sua face, vazia de expressão. Olhe só para você mesma: não se move, não respira nem me sussura belas palavras. Seus dedos já não se entrelaçam no meu cabelo, nem massageiam meus ombros depois de um dia inteiro de amor. E pensando bem, seus olhos sempre foram assim meio ocos, meio zombeteiros. Você me via ou via através de mim? Era a mim que jurava amor, ou a outro às minhas costas, em quem você deitava seu olhar inexpressivo enquanto eu te abraçava sem força? Maria Rosa, meu primeiro amor, se antes sua língua tremia com todo o fel que pode haver neste mundo, hoje suas palavras soam como ecos de sabedoria de uma vida passada, de uma existência finda. Não te ouço porque nos distanciamos: eu, um não-amador, fico sem a não-amada. E você, que se dane nessa sua cama solitária.

Tinha aquela toalha de mesa, lembra?, um pano marrom, meio cinza, que escurecia o desjejum como o café que se mistura à claridade leitosa da manhã. Sua cadeira, do outro lado da mesa, ficava sempre vazia, e é por isso que não vai me fazer falta a sua ausência matinal. O pão era repartido, as guarnições fartas e até mesmo o leito era resfriado, tudo contado para dois, tudo miseravelmente resplandecente sobre um borrão de tristeza velho e marrom, como se fosse um objetivo vindo dos seus sonhos envoltos em lençóis brancos. Agora você dorme como sempre dormiu, nos meus momentos de maior solidão: seus olhos sempre fechados, sua boca sempre quieta, sua mãos, imóveis. E seus pés que se enrolavam na roupa de cama a cada espreguiçada agora caem sobre o pano branco que te levará para onde colocarem seu corpo. Maria Rosa, quanto tempo da sua vida você não perdeu na cama, enquanto o sol a pino já acabava com a manhã!

Agora é tarde, Maria Rosa, para se levantar. Seus olhos não vão se abrir porque seu sono tem agora outro berço, e a rigidez com que suas mãos pairam sobre seu peito não mais indicam a serenidade de uma noite bem descansada. Acabou, você perdeu a sua chance de se sentar comigo à mesa, de compartir do pão e da manteiga, do café e da prataria.

Eu não te amo, Maria Rosa, mas como eu queria que você tivesse levantado mais cedo pelo menos uma vez!

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Uma outra manjedoura

São ecos de uma rabugem que cai mal à nossa idade: percebemos as luzes, a decoração que finge inverno, as mesmas melodias cheias de sinos para em seguida fungar em reprovação, balançar a cabeça repressivamente e fazer algum comentário ácido sobre as pessoas que param o trânsito e observam, maravilhados, os enfeites de Natal. Não digo que a maioria seja assim tão avessa às festividades dessa época do ano, mas estou certo de que é considerável a parcela da população desta cidade que despreza tudo isso, diz que odeia a Natividade e não vê a hora de passar para 2011. Eu, na minha modesta opinião de desterrado paulistano, reprovo, caladamente, a arrogância dos rebeltes natalinos, apesar de definitivamente não fazer parte da massa que chora com o "jingle bells".

Na verdade, penso que o Natal e todo esse fenômeno que vemos por São Paulo nessa época deve ser vivido e analisado como ele verdadeiramente é: uma bela jogada de propaganda. Vende-se muito, gasta-se e se ganha muito dinheiro por aí, o que, capitalistamente, é o grande milagre de Cristo. Para a cidade, é uma maravilha de verdade: quanta gente não vem visitar e sai daqui com uma boa impressão? Quantos não são os cansados que, radiantes, fogem daqui de supetão como se tivessem poucos dias para atravessar a Galiléia? Na equação dos que saem, dos que ficam e dos vêm, temos uma São Paulo mais atraente aos de fora e mais útil aos daqui. Nisso reside o tal do "espírito natalino", que as pessoas pensam que existe, mas que é nada menos do que uma simples mudança de atitude motivada por questões puramente materiais: no Natal, paramos de andar olhando para o nada e com a cabeça em milhões de prazos e compromissos para prestar a atenção à cidade, elogiando-a ou a criticando.

No final das contas, descobri que adoro turistas por aqui! Um amigo, metido a análises, disse que eles fazem bem para o ego. Eu digo apenas que fazem bem à cidade, e isso basta.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Naquela época

Naquela época, estudava Direito, no Largo São Francisco, resignado a ser um profissional liberal, apesar de, no fundo, já querer ser um escritor. O ônibus todo dia o levava de casa até o centro da cidade, em meio aos mendigos, aos automóveis e à falta de educação. As manhãs eram cinzentas como sempre foram naqueles tempos, os jornais não traziam boas notícias, as pessoas adoeciam e se encolerizavam. Mesmo assim, ele era confiante. Pensava no futuro, o passado ainda não havia, o presente até que tinha suas vantagens, e a paisagem lhe inspirava sofisticados devaneios, mesmo sendo um cemitério de edifícios como aquela São Paulo do começo do século.

Nobel para Vargas Llosa

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Um erro!

Hoje eu cometi um erro gravíssimo, contrário a todas as regras de conduta em hospital geral neste país.
Passando pelos internados de uma ala qualquer do hospital, entrei em um quarto no fundo do corredor, no qual se alojavam duas mulheres jovens. Não tinham mais de vinte e cinco, estavam ambas de camisola e tinham as cabeças completamente carecas. O diagnóstico de leucemia foi pregado em suas testas, hoje sem franjas, há um mês, e logo em seguida seguiram as duas para a quimioterapia. Não se conheciam, apesar de viverem na mesma cidade interiorana, de serem da mesma faixa etária e de levarem consigo desde o nascimento os fatores de propensão à doença. O que lhes uniu, entretanto, foi aquele quarto branco do SUS, cujas macas lhes servem de leito.

Primeiro, eu fui hoje à tarde no quarto delas para acompanhar uma colega fazer a anamnese e o exame clínico. O bom de ser estudante de medicina é que você ainda não incorporou a distância dos médicos e nem tem poder de impor seus conhecimentos sobre os pacientes, o que te faz mais um visitante desconhecido do que exatamente um profissional da saúde. Por isso, a anamnese da minha amiga fluiu em uma conversa paralela entre as meninas, as mães delas, e mim. Contei-lhes que eu participo do grupo de palhaçoterapia da faculdade, e puvi uma reclamação de que elas ouviam a música nos outros quartos, mas nunca tiveram a oportunidade de ter os músicos em seu quarto. Expliquei que não tínhamos tempo de chegar até o fim do corredor, mas que hoje à noite eu falaria para eles entrarem naquele quarto sem falta.



Pois esse foi meu erro. Descobri, à noite, com um nariz de palhaço e um avental laranja, que  pessoas com leucemia não pode receber muita visitas ao mesmo tempo. Vi-me perante um dilema: aceito essa regra ou mantenho minha promessa? A porta do quarto ficou o dia todo aberta, enfermeiras, médicos e estudantes entraram e saíram de lá a seu bel prazer. Janelas escancaradas, corredor movimentado, acompanhantes que entram e saem, tudo isso são carregadores de germes perigosos a quem está com a imunidade deprimida. Por que o meu grupinho de violão era, então proibido? Admito que pequei e enfiei no quarto uma pessoa com um violão e mais três outros cantores e pedi que só tocassem uma música só e que saíssem do quarto assim que acabassem. As meninas ficaram felizes, agradeceram-me com um sorriso que eu só pude perceber graças às rugas que apareceram nos cantos da máscara que lhes cobria a boca.

Essa minha falta foi imperdoável: escolhi tentar aliviar a tristeza do câncer e manter minha promessa a seguir cegamente uma ordem insensata.

sábado, 7 de agosto de 2010

Inconsciências

Algumas coisas têm passado pela minha cabeça ultimamente, vou tentar fazer uma listinha delas, incompleta e simplificada, claro, porque ninguém consegue pôr tudo o que pensa num papel.


  • Já disse uma vez para mim mesmo que com a internet as pessoas passaram a escrever - e a pensar - só coisas publicáveis, o que diminui consideravelmente a imaginação de todos nós. Quando vivemos num mundo em que podemos nos comunicar com o mundo inteiro tão rapidamente, a privacidade perde a graça, e não nos damos conta do quão importante ela é para nós mesmos. São poucos os que se dignam a escrever e guardar o escrito, preservando um pouco de intimidade, e eu não estou entre eles.
  • A aparência é mais importante do que eu até agora achava que ela era.
  • As pessoas tem papeis determinados nas vidas dos outros, e quanto mais completa a presença de alguém na sua vida, mais envolvido você está com ela. Por isso que tem gente que some e não percebemos, enquanto outros, mesmo que efemeramente, marcam a gente para sempre. Isso me leva a outro questionamento, que eu não sei responder, sobre se as pessoas são ou não substituíveis, mas isso é metafísica demais para um sábado à noite.
Boa noite!

terça-feira, 20 de julho de 2010

A gente se comove

Por que a gente se comove com coisas tão aleatórias?

Imaginem que eu estava voltando pra casa de noite, na Paulista, quando me deparo com um pai jovem, acompanhado de seus filhos. Ele vendia doces caseiros, portava à tiracolo uma bandeja onde apoiava sua mercadoria e com os braços acolhia as duas crianças em seus flancos. O menino abraçava a menina, a menina agradava o pai, e ele equilibrava os quitutes e os carinhos com maestria. Ele me abordou oferecendo os tais doces: três pares de olhos esperavam minha resposta, que foi um corriqueiro não, obrigado. Apenas mais um caso de vendedores ambulantes nesta malfadada cidade, dirá a maioria. Outros, mais sociológicos, dirão que esse é um dos frutos das injusta distribuição e da opressão que os ricos exercem sobre os pobres. Dessa forma, discute-se se os ambulantes devem ou não ser considerados novos hereges ou se devem ter carteira assinada, se podem ser enxotados de volta às suas miseráveis terras ou se poderão tentar conseguir um pouquinho de riqueza nesta capital.

O fato é que o homem e as crianças sorriam. Alheios à insensibilidade e ao desprezo de todos, os três estavam unidos numa mesma digna missão de ganhar o pão para o dia seguinte. Os filhos eram capitaneados pelo pai, que ainda não perdeu seu sotaque natal e que andava aquela via enorme de ponta a ponta, oferecendo a bocas desconhecidas aquilo que suas mãos a ele tão familiares produziram em alguma cozinha distante. Não roubavam, não malediziam a outrem nem choravam suas penas ou festejavam suas glórias: estavam felizes em vender aquilo que vendiam, em nisso reside uma sabedoria dificilmente alcançada.Sorriam, e eu andava tão carrancudo.Aquela era uma família unida que estava hoje à noite pela Avenida, e talvez fosse a única.